segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

O Plano Divino

Primeira página do Livro da Criação (Sefer Yetzirah), século XV

A pergunta “Porque criou Deus o Universo” é uma das mais difíceis de responder, em todas as tradições espirituais. Segundo a tradição oral da Kabbalah, Deus desejou contemplar-se a si mesmo e ser conhecido, e desta forma o espelho da Existência foi convocado[1]. Mas a resposta cabalística a esta questão levanta inevitavelmente outras questões. Precisa Deus da Sua criação? Existe n’Ele uma insatisfação? Qual a natureza do desejo divino?
A todas estas dúvidas é possível objectar com a perfeição divina. Deus é Aquele que É[2], e nada em si alguma vez se altera[3]; emanando da própria perfeição, toda a Sua obra é perfeita. Ora, se Deus não possui qualquer falta e não experimenta nenhuma necessidade, o Plano Divino da Criação não pode resultar de uma carência, e será uma consequência inevitável e uma característica intrínseca da própria natureza divina. O acto da Criação deve ser, em si mesmo, a manifestação da natureza criadora de Deus, que a manifesta criando e recriando-Se permanentemente a Si próprio.
Desta maneira, nem o Universo terá sido criado num momento circunscrito no passado, nem a sua existência actual pode ser o mero resultado da evolução de um potencial original e limitado. Pelo contrário, o mundo é criado em cada instante. A obra divina decorre da natureza divina, e como esta não tem princípio ou fim, e nunca se altera. O Amor divino manifesta-se incessantemente na geração e sustentação do Universo e de todas as suas criaturas. Deus é o movimento amoroso que conduz à Criação, a própria Criação, e o deleite contínuo neste movimento. 
Por toda a Eternidade, Deus jaz numa cama de parto, dando à Luz. A natureza de Deus é dar à Luz, escreveu Meister Eckhart. Na sua explicação da natureza divina e do primeiro acto da Criação, tanto Eckhart, o místico cristão, como a tradição kabbalística, estão muito próximos da cosmogonia hindu. Aqui, Ananda, o Prazer ou o Êxtase, teve origem em Brahma[4] juntamente com o impulso da manifestação de formas no seio da Criação. O propósito da Criação é a experiência deste Prazer divino, ilimitado e sem oposto por todas as formas criadas, da mesma maneira que Brahma o experiencia: esta alegria cujo outro nome é amor deve, pela sua própria natureza, realizar-se na dualidade. (…) O amante busca no amado o seu outro eu. É a alegria que cria esta separação, de maneira a realizar, através dos obstáculos, a união [5].
Longe de ser necessária, como algo que está em falta, a Auto-contemplação divina é um puro acto de Vontade[6]. Esta Vontade pode também ser entendida como Desejo, embora nada tenha a ver com a multiplicidade dos desejos que conhecemos. A Vontade ou Desejo divinos, ou o “Deus quer”, são Amor e Alegria sem limites. Da mesma forma, o Desejo de Deus não Lhe traz qualquer sofrimento, como acontece com os desejos das criaturas, nascidos da ausência de algo. Deus deseja-Se em permanência, e em permanência satisfaz o Seu desejo, de tal modo que nunca há Nele insatisfação e sim o eterno júbilo do desejo plenamente realizado.
A este movimento contínuo, que é pleno Amor e plena Alegria, chamamos de Plano Divino – a eterna expansão e retorno da Criação (ou do Criador). Deus e o Plano Divino são Um; Deus e a Criação são Um. Assim, “Deus contempla Deus” continuamente, como Criador e Criado. Pela manifestação contínua da Sua natureza criadora, o Deus incriado contempla o Deus criado. Nesta contemplação, Deus ama-Se e rejubila incessantemente com a Sua presença, ao mesmo tempo escondida e revelada na obra muito boa[7]. Este movimento é equivalente à Dança Cósmica de Shiva, também chamada de Anandatandava ou Dança do Êxtase, a Grande Festa da Criação, o eterno parto da Luz de que fala Meister Eckhart. Tudo quanto existe é prazer puro; Criação é Amor e Alegria. 

A Criação 

Deus e a Criação são Um, mas a Criação é múltipla. Tal como a natureza de Deus é a Unidade criadora, a natureza do mundo é a multiplicidade criada. Este paradoxo é expresso de diversas formas, entre as quais está o comentário rabínico O lugar de Deus é o mundo, mas o mundo não é o lugar de Deus[8].
A Criação teve lugar, diz a Tradição, quando Deus se retirou de uma parte de Si mesmo para permitir o surgimento do vazio (Ain) onde se desenvolveu a Existência. No mesmo instante terá nascido a Dualidade, e com ela a Eternidade, ou o Tempo. A Dualidade é expressa, antes de mais, pela oposição entre Deus e o vazio por Ele criado, ou por Deus e pela Existência[9]. A partir daqui, a Tradição cabalística desenvolve-se num sistema complexo de níveis.
Assim, Ain é o Absoluto, o Infinito Nada ou O Não-Existente. De Ain surge Ain Sof, o Infinito, a origem divina de toda a Existência, ou o estado de Deus imediatamente antes da Sua auto-manifestação (também traduzido como O Inominado). De Ain Sof surge finalmente Ain Sof Aur, A Luz Eterna ou Ilimitada, a primeira manifestação de Deus.
Então, a Luz divina retirou-se do espaço da Criação através de três estágios[10]. Primeiro ocorreu o Tzimtzum, a contracção ou retraimento da Luz, de forma a permitir a criação de realidades “separadas”[11]. Seguidamente, observa-se a presença de Luz residual, não tanta que impedisse a formação do espaço “vazio” necessário à Criação, mas suficiente para garantir a inevitável omnipresença de Deus. Este traço de Luz residual – o Reshimu, ou “impressão” – é a matriz de tudo quanto veio a surgir. O terceiro estágio é o do Kav, ou Raio de Luz, que emana directamente de Ain Sof sem ter sofrido qualquer contracção, e fecunda o espaço vazio impregnado de Reshimu.
De Ain Sof (O Infinito) emanaram então, lançadas para o ventre vazio surgido em Ain (O Infinito Nada), as dez Sefirot[12] que compõem a Árvore da Vida ou o Homem Primordial, esquema de toda a Criação. As Sefirot, emanações ou aspectos da energia divina, surgem por etapas. A Árvore da Vida por elas formada é a própria Existência, desenrolando-se no Espaço e no Tempo.
A primeira Árvore da Vida é de facto Adão Kadmon, o primeiro “rosto” de Deus a manifestar-se no Vazio que resultou da contracção da Luz. Adão Kadmon é a pura Luz Divina transportada por Kav, o Raio de Luz que permeou o Vazio, revestida com a forma de um ser humano. Representa o Plano Divino, a Vontade de Deus que conduz à emanação dos Quatro Mundos. Cada um destes mundos é um “rosto” de Deus, mas Adão Kadmon é a face original, a primeira a surgir na matéria[13], correspondendo ao nível divino primordial, ou Azilut. Sendo constituído pela totalidade das Sefirot da árvore divina, Adão Kadmon é um ser integrado, que possui em si as duas polaridades da Existência perfeitamente harmonizadas e funcionais[14].
A criação dos três mundos abaixo de Adão Kadmon corresponde a outras tantas etapas de manifestação ou limitação da Luz Divina. A raiz da palavra Azilut significa “estar perto de”. Esta proximidade refere-se ao Deus não-manifestado. A partir desta Árvore nascem as restantes Árvores ou Mundos, cada qual mais afastado de Ain Sof, e cujo desdobramento traduz a plenitude da manifestação da Existência ou Criação, respeitando a um nível de consciência específico.
O segundo nível divino é Beriah, o mundo da Criação, e o primeiro verdadeiramente afastado de Ain Sof. Esta separação resulta na dualidade arquetípica. Em Beriah surge, como descrito no Génesis, a luz e a escuridão, o feminino e o masculino, o passado e o futuro, o Bem e o Mal. Adão Kadmon é aqui inicialmente descrito como “homem e mulher”[15], o que revela a sua essência como ser andrógino ou integral, mas prevê igualmente a sua polarização masculina e feminina.
O terceiro nível divino é Yezirah, o mundo da Formação, onde tudo aquilo que foi emanado como luz divina em Azilut e criado como espírito em Beriah “toma a forma” de cada alma ou individualidade. É neste mundo que Adão é chamado a nomear (ou diferenciar) todos os seres vivos[16], e é também neste mundo que Deus forma o homem “do pó da terra”[17] e divide Adão em homem e mulher. Adão e Eva são agora princípios psicológicos polarizados e particularizados, que constituem o molde de todas as formas e variedades de homens a nascer na carne.
Torna-se aqui evidente que cada nível é mais restritivo para a Existência do que o nível anterior, e isto é particularmente visível no quarto mundo, ou Asiyyah. Em Asiyyah tudo se manifesta como matéria distinta, ficando assim completa a obra da Criação. Adão e Eva, as duas metades de Adão Kadmon, estão finalmente limitados na sua separação por corpos de carne e osso[18]. A Existência está tão afastada de Deus quanto possível, e só lhe resta prosseguir esse movimento na sua continuação natural e inevitável, a do retorno ou Reintegração.
Este é, em traços largos, o esquema da Criação. Nele estão presentes as leis que a regem, e que realizam, em cada instante, o Plano Divino. 

As leis que regem a Criação 

O Plano Divino desenvolve-se segundo leis de complexidade crescente, à medida que a obra da Criação progride. Tudo quanto existe obedece basicamente aos mesmos princípios divinos que conduziram o desenrolar da Árvore da Vida em Azilut e o seu desenvolvimento nos Quatro Mundos. Estes princípios são mais fáceis de identificar em Asiyyah, onde estão plasmados na matéria, mas é preciso lembrar que esse é apenas o estágio de completude de tudo o que foi anteriormente emanado, criado e formado, estando portanto já presente nos mundos anteriores.
Assim, em Asiyyah toda a Existência possui um veículo físico composto de quatro elementos – o elemento sólido (Terra), o elemento líquido (Água), o elemento gasoso (Ar) e o elemento radiante (calor, luz ou Fogo). A presença destes quatro elementos representa, na matéria mais densa, os Quatro Mundos, correspondendo Azilut ao Fogo, Beriah ao Ar, Yezirah à Água, e Asiyyah à Terra. O número quatro repete-se nos estágios da Criação (mineral, vegetal, animal e humano), e esta “regra de quatro” é válida para muitos aspectos da Vida, nomeadamente aqueles que estão relacionados com a estrutura da realidade[19].
Da mesma forma, toda a Existência respeita a regra tripla representada nas colunas direita, esquerda e central do esquema da Árvore da Vida, e também nas suas tríades. Pelo estudo destas estruturas triplas podem-se entender algumas regras básicas da realidade, como a relação entre dois pólos opostos e o equilíbrio ou harmonia “central”, ou a efectivação da capacidade criativa que resulta da união de dois princípios complementares geradores de um terceiro (Reino da Formação). Se o desenvolvimento da Existência em quatro etapas estava essencialmente ligado à estrutura da realidade, os sistemas ternários estão ligados aos processos e funcionamento da mesma realidade[20].
A relação dual, que surgiu com a própria Criação, está antes de mais representada pela relação entre Keter e Malkut e pelas faces superior e inferior da Árvore (o que está em cima e o que está em baixo, o ponto de origem e o ponto de chegada, Deus e o Mundo, o Criador e o Criado, o Rosto e o espelho no qual Este se pode contemplar). Se foi através da dualidade que se perdeu a perfeição da Unidade, será igualmente através da relação dual que se atingirá o regresso a esta (se dois se unem para dar origem a um terceiro, também dois se devem unir para formar um só). Na Existência, a relação dual está presente na génese de todos os processos de criação[21] (Platão não lhe atribuía sequer um significado distinto, uma vez que de todas as relações surge um terceiro factor que as modifica).
A Unidade, representada por Keter e pelo mundo de Azilut (aquele que está perto do não-manifestado), não representa a natureza de Deus, que está para além da própria Unidade, mas sim o primeiro aspecto da manifestação. Este é o número do Criador, de onde emanará toda a Criação[22].
Da Unidade emana a Dualidade. Esta é, por natureza, criadora, e pela união de dois princípios complementares dará origem a um terceiro, o princípio ou agente formativo da Existência. Este agente formativo materializa-se finalmente num “corpo” físico, o quarto princípio, onde se completa a obra da Criação. Como é visível, tudo isto acontece de acordo com o princípio intrínseco da manifestação, que determina serem cada vez mais complexas as leis que a regem à medida que a matéria se adensa.
Temos, portanto, quatro princípios básicos: a Unidade ou Emanação (Azilut), a Dualidade ou Criação (Beriah), os processos ternários ou a Formação (Yezirah), e os quatro elementos do mundo físico ou da Realização (Asiyyah). Estes quatro princípios, somados, produzem o número 10 (1+2+3+4), que é o das Sefirot, ou etapas de realização de cada processo e aspecto da realidade (às quais se soma a “não-sefira” de Daat). As suas interrelações dão origem a todos os outros números ou regras, que regem aspectos mais detalhados da realidade.  
As próprias Sefirot agrupam-se de forma significativa no esquema da Árvore, permitindo compreender melhor a forma como o Plano Divino se desenrola. Assim, o nível da Vontade, correspondendo à Unidade e à Emanação, estará em Keter, a Coroa. O nível do Intelecto, correspondendo à Dualidade e à Criação, será composto pelo par Hokhmah - Binah, ou pela Sabedoria e pelo Entendimento[23]. O nível da Geração ou Formação, de natureza tripla, será composto pelo trio Hesed, Gevurah e Tiferet, ou Misericórdia (Expansão, Suavidade), Justiça (Contracção, Força) e Beleza (Harmonia, Equilíbrio)[24]. O nível quádruplo da Forma realiza-se em Netzah[25], Hod[26], Yesod e Malkhut[27], ou Eternidade, Reverberação, Fundamento e Reino (o Mundo ou a Matéria).
Os aspectos representados por cada Sefira, e a forma como estas se relacionam entre si numa dada circunstância, regem os processos da Manifestação em detalhe ainda maior[28]. De acordo com a regra da progressiva complexificação da Existência (da Unidade para a Multiplicidade), estamos, tal como toda a Criação, sujeitos a tanto mais leis quando maior for a nossa imersão na matéria; e libertamo-nos delas, progressivamente, à medida que a consciência ascende nos Quatro Mundos.
As mesmas leis que norteiam o desenrolar do Plano Divino determinam a experiência de cada ser criado, e gerem o processo de Reintegração da Criação. Podemos vê-las em acção nas nossas vidas, no nosso corpo, na nossa psique, nos nossos relacionamentos, na Natureza, e em todas as formas da Manifestação. É deste modo que Deus quer, o Homem sonha e a obra nasce. Assim desperta em nós e em toda a Existência o princípio de qualquer manifestação, que é depois dirigido, primeiro pela inteligência que em tudo existe, depois pelo método da geração (seja ela física ou de outro nível), para enfim se realizar na matéria – podendo esta ser muito mais subtil do que a matéria física como geralmente a entendemos.
Cada ser humano é uma versão em pequena escala de toda a Existência. É composto pelos quatro mundos do corpo, psique, espírito e centelha divina, e também pelos elementos da Terra, Água, Ar e Fogo. Vive num tempo e num espaço tridimensionais, funciona no mundo através de fenómenos triplos, como a reprodução e o pensamento dialéctico, e possui ao seu dispor os caminhos da Acção, da Contemplação e da Devoção como formas de ascensão. A Dualidade ou Separação é a “grande ilusão” original na qual vive, causa do seu sofrimento, e motor que o conduz ao Trabalho. A Unidade é a sua meta, e também a meta a ser transcendida. Esta é a via de realização da Consciência, que é a própria centelha divina constituinte de tudo quanto existe. 

Adão Kadmon - a realização do Plano Divino 

Adão Kadmon tem um papel fundamental no Plano Divino, não apenas na emanação das Sefirot, mas igualmente no movimento de Reintegração. Através das suas diversas manifestações – no espírito, como o Adão e Eva do Paraíso primordial, no mundo psicológico, como Anima e Animus, e na carne, como homem e mulher – Adão Kadmon é o portador da Luz Divina. Esta Luz é a própria consciência através da qual Deus pode contemplar-Se. A Humanidade é Adão Kadmon, o Espelho de Deus, colocado (fragmento a fragmento) na matéria mais densa. A Contemplação far-se-á quando o espelho estiver totalmente reconstruído, e puder reflectir de forma perfeita tudo o que está acima dele. Só o Homem, na sua condição particular de única criatura que pode entrar nos Quatro Mundos, por ter existência em todos eles[29], pode efectuar conscientemente e de livre vontade este trabalho de Reparação (Tikkum) do Mundo. 
A História é a contribuição da humanidade para auxiliar Deus a contemplar Deus. Cada um de nós é um órgão de percepção através de cuja experiência Adão Kadmon pode ver a reflexão do Absoluto. Com a Ressurreição, no Fim dos Tempos, virá o reconhecimento de que tudo quando aconteceu foi planeado. A chave é descobrir qual é a função específica que cada um de nós deve desempenhar[30].
Deus foi o princípio e o Homem foi o fim, mas agora o Homem deve ser o princípio e Deus o seu fim. Será mesmo possível dizer que à medida que o Homem cresce, Deus decresce, já que estes termos designam uma só realidade. E assim se realiza, em cada momento, o Plano Divino[31]. Quando toda a Criação, através do trabalho da Consciência e de acordo com as leis que regem a Manifestação, tiver reconhecido a Sua verdadeira natureza, o Rosto poderá contemplar o Rosto. O Plano Divino estará plenamente realizado, e um novo Plano poderá começar a desenrolar-se, enquanto Deus rejubila na perfeita manifestação da Sua natureza criadora[32].





[1] , Z'ev ben Shimon Halevi, Kabbalah and Exodus, 1988, p. 15 (tradução directa). 
[2] Ex. 3:14 (“EU SOU AQUELE QUE SOU”). 
[3] Ml. 3:6 (“Eu sou o Senhor e não mudo”). 
[4] Deus hindu da Criação, fazendo parte da Trimurti (tripla deidade) com os deuses Vishnu (o preservador da vida) e Shiva (o destruidor da vida). É considerado o progenitor de toda a Humanidade, sendo pai de Manu, de quem descendem todos os homens. 
[5] Rabindranath Tagore, Sadhana. 
[6] Gn. 1:3 (“Deus disse: «Faça-se a luz.» E a luz foi feita”). 
[7] Tal como a “necessidade” divina da Auto-contemplação deve ser entendida como um acto puro de Vontade, também a consideração de que a Sua obra era tov meod - “muito boa” (Gn. 1:31) deverá ser lida como mais do que uma mera apreciação, por parte de Deus, de algo que nunca poderia ser menos do que perfeito. De acordo com os Hazal, ou primeiros comentadores da literatura rabínica, a proclamação tov (“bom”), aplicada primeiro a cada dia da Criação e finalmente à totalidade da obra divina no sexto dia, infunde e confirma a bondade intrínseca de toda a Manifestação. Tov é mais do que uma apreciação: é o espírito, a energia e a vitalidade essenciais, a centelha ou presença divina em cada coisa, a alegria do Ser. A constatação de que a Criação era “muito boa”, tendo-se seguido à criação do Homem, implica também que Deus está já diante do Seu espelho, em Auto-contemplação, posto que esta apreciação só seria possível na Dualidade ou Manifestação (ver nota 9). 
[8] Comentário rabínico ao conceito cabalístico do Tzimtzum (“Contracção”), usado para descrever o processo da Criação como tendo início na contracção de uma ínfima parte de luz divina, de modo a permitir o surgimento de um espaço vazio destinado a conter o Universo finito. 
[9] No entanto, a Dualidade só existe do ponto de vista da Criação; em Deus não há qualquer distinção entre Deus, o Vazio e a Existência, ou entre a origem da Luz e a Luz em si mesma.
 [10] Particularmente desenvolvidos na obra de Isaac Luria. 
[11] Existem duas “escolas” neste ponto: os comentadores defendendo que Deus se retirou totalmente do espaço da Criação, e a escola de Ba'al Shem Tov, que afirma não ser esta uma retirada literal, mas apenas um símbolo da forma como Deus está presente na realidade finita. Esta última perspectiva é a mais aceite, significando que a omnipresença de Deus é constante, ainda que a Sua Luz pareça desaparecida do ponto de vista da Criação. O “velamento” da Luz Divina é necessário para o exercício do livre-arbítrio, e para o desenrolar do Plano Divino, que resulta justamente na progressiva revelação de Deus na matéria. Portanto, o objectivo do velamento é a Revelação. O processo pode ser comparado com o de um professor, que, diante do aluno que nada sabe, deve “esconder” todo o seu conhecimento para o mostrar aos poucos. A Kabbalah tem justamente a ver com este processo de Revelação do que está escondido. 
[12] Sefira (ou “numero” em hebraico) é cada uma das dez emanações, poderes, atributos ou princípios através dos quais Deus se manifestou na Criação. Cada sefira está relacionada com um aspecto de Deus como Criador, e o seu surgimento equivale ao ritmo da Criação. 
[13] Adão significa “da terra (vermelha)”, e Kadmon significa “primordial” ou “original”, unindo-se assim no seu nome a matéria da Criação e o nível divino. 
[14] Embora na Árvore as duas polaridades estejam presentes de diversas formas, Yesod representa directamente a polaridade masculina e Malkut a feminina. 
[15] Gn 1:27 (“Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher”). 
[16] Gn 2:19 (“Então, o SENHOR Deus, após ter formado da terra todos os animais dos campos e todas as aves dos céus, conduziu-os até junto do homem, a fim de verificar como ele os chamaria, para que todos os seres vivos fossem conhecidos pelos nomes que o homem lhes desse”). 
[17] Gn 2:7 (“Então o SENHOR Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo”). 
[18] Gn. 3:21 (“O SENHOR Deus fez a Adão e à sua mulher túnicas de peles e vestiu-os”). 
[19] Como exemplos entre muitos outros, vejamos: as Quatro Nobres Verdades do Budismo (Dukkha, Samudaya, Nirodha e Magga), o Tetragrammaton YHVH (ou o nome de Deus formado a partir de quatro consoantes que, quando dispostas na vertical, formam a figura de Adão Kadmon, o Homem Primordial), os quatro Evangelistas, os quatro rios do Paraíso, as quatro metas e os quatro estágios da vida humana do Hinduísmo, os quatro livros do Islão (Taurah, Zaboor, Injeel e Quran), as quatro fases da vida humana (infância, juventude, maturidade e velhice), as quatro direcções cardeais, os quatro nucleótidos do ADN (adenina, guanina, citosina e timina), os quatro tipos sanguíneos, as quatro forças ou interacções fundamentais da Física (gravidade, eletromagnetismo, força nuclear fraca e força nuclear forte), o simbolismo da cruz e do quadrado (completude da Criação, da matéria ou do Universo), as quatro estações do ano, as quatro semanas do mês lunar, etc. 
[20] A Santíssima Trindade e todas as deidades triplas (nomeadamente no Hinduísmo, Budismo e Taoísmo), as Três Jóias ou Refúgios do Budismo (Buddha, Dharma e Sangha), as três cores primárias (ou percepção tripla da luz) a partir das quais se produzem as restantes, o processo triplo pelo qual a informação genética é codificada na cadeia do ADN (através dos tripletos, ou conjuntos de 3 nucleótidos correspondendo a um aminoácido), os três constituintes do átomo (electrão, protão e neutrão), as três dimensões visíveis do universo, os três aspectos do Tempo (Passado, Presente e Futuro), os três “atributos divinos” (omnisciência, omnipresença e omnipotência), os caminhos da Acção, Contemplação e Devoção, a representação da família nuclear (pai, mãe e filho) e do desenvolvimento dos processos criativos básicos, sejam físicos ou dialécticos (espermatozóide, óvulo e zigoto, ou tese, antítese e síntese), e o simbolismo geral do triângulo, entre muitos outros. 
[21] Todos os princípios fundamentais da Dualidade, como os princípios feminino e masculino, a lei da atracção e da repulsão, sujeito e objecto, causa e efeito, Bem e Mal (ou a sua percepção), o princípio e o fim (o nascimento e a morte), o Homem (espelho de Deus), a Separação, os processos de divisão, os esquemas binários, a complementaridade ou a oposição, o equilíbrio ou o conflito, a esquerda e a direita, o que está em cima e o que está em baixo, a luz e a escuridão, o Yin e o Yang. Mas também tudo o que foi criado, de forma geral: o homem e a mulher, o macho e a fêmea de cada espécie, o Céu e a Terra, o Sol e a Lua (ou os astros com luz própria e os astros sem luz própria), a Palavra de Deus sob forma escrita ou oral (na Torah, por exemplo), os aspectos interior e exterior da realidade, das religiões e da Tradição. E ainda todas as partes dos corpos que não pertencem ao seu eixo central (olhos, narinas, ouvidos, braços, mãos, pernas, pés, e órgãos internos duplos). 
[22] Equivalendo ao Atman hindu, à Mónada dos Pitagóricos, ao Um Neo-Platónico, etc. Não sendo um número, o Um é a fonte de todos os outros, criando-os por adição ou divisão. A Unidade equivale também ao Tao, o absoluto que gerou os opostos/complementares Yin e Yang, a partir dos quais foram criadas as "dez mil coisas" que existem no Universo. 
[23] A Sabedoria provém directamente de Keter, e estabelece o princípio da Dualidade. Significa, neste nível, o domínio absoluto e directo (não intermediado pelo intelecto, visto que neste ponto ainda não existe Entendimento) de tudo quanto É, Foi e Será. Binah, o Entendimento, é, por oposição, o primeiro momento do uso da intelecção. Através dele, aquilo que em Hokhmah era directo passa a ser mediado; a Criação é observada, torna-se o Outro, e é passível de nomeação – e, logo, de diferenciação. 
[24] Os pares de opostos harmonizam-se na coluna central, em Tiferet, que representa a essência ou alma da Criação. Esta essência é, portanto, o termo justo entre Justiça e Misericórdia, Força e Suavidade, Contracção e Expansão, etc. Tiferet, note-se, tem uma posição central na Árvore tanto na horizontal como na vertical. 
[25] Netzah é traduzida como Vitória, mas também como Eternidade, mas a palavra significa “repetir o ciclo”. Netzah representa os ciclos perpétuos a que está sujeita a Criação. Simboliza a resistência, a constância e a perseverança, forças invencíveis que conduzirão o Homem ao seu destino final através de etapas, como a reencarnação ou os processos de maturação sofridos em cada vida. Netzah é a energia pura em funcionamento, e também o labor contínuo e paciente, a prática constante que lentamente produz resultados, a “água mole em pedra dura”, o “devagar se vai ao longe”. 
[26] Hod significa “vibrar”. Esta Sefira simboliza o intelecto e a aprendizagem, a criação de formas inteligíveis a partir da energia pura, a direcção inteligente das capacidades de Netzah. A vibração ou “reverberação” equivale à repetição de fórmulas eficazes encontradas através da reflexão sobre os ciclos netzianos. Hod identifica padrões e leis universais e utiliza-as, fazendo magia, actualizando rituais, ou simplesmente obtendo resultados em qualquer área da vida, desde a esfera privada até à experimentação num laboratório. 
[27] A energia vital em perpétuo movimento (Netzah) e a capacidade de compreender e aplicar as leis da Manifestação (Hod) unem-se em Yesod, onde estes dois princípios se tornam criativos. Yesod transmite finalmente a informação gerada a Malkhut, onde a Criação toma forma material completa. Yesod age como mediador, traduzindo os princípios acima de si em expressões compreensíveis para os que estão mais abaixo e permitindo a sua utilização eficaz. Na sua pureza original, o “prisma” de Yesod é cristalino, e em nada distorce a luz reflectida, dando origem a uma criação que reproduz perfeitamente na matéria os planos superiores, e fazendo do Reino (Malkhut) o verdadeiro Corpo e Espelho de Deus. 
[28] Os caminhos patentes na Árvore, unindo as Sefirot, demonstram diversas outras leis que regem o Plano Divino. Por exemplo, e no que respeita a Daat e ao conjunto da coluna central, também designada de coluna da Graça, tais caminhos permitem-nos compreender que existe uma ligação directa entre Keter e as quatro Sefirot abaixo desta, o que revela uma nova série de possibilidades no caminho da realização da Consciência. 
[29] Toda a restante Criação, mesmo os níveis angélicos, existe apenas a partir de Beriah. Só o Homem Primordial, na forma de Adão Kadmon, existe em Azilut. 
[30] Z'ev ben Shimon Halevi, “An Introduction to Kabbalah”, http://www.kabbalahsociety.org/wp/?page_id=152 
[31] Como já vimos, o Plano Divino da Criação realiza-se aqui e agora, e não num qualquer futuro projectado. 
[32] De acordo com a doutrina dos Ciclos Cósmicos, ou Shemittot (plural de Shemittah). Ao fim de um determinado período, Deus destruirá o mundo e recriará um mundo novo.